Uma viagem pelas memórias de Silvio Zeitune
- Vanessa Barcellos
- 28 de abr. de 2021
- 5 min de leitura
Atualizado: 13 de mai. de 2021
Às 9h de uma terça-feira, no período da pandemia, as ruas da Saara parecem calmas como os dias de feriado no centro do Rio de Janeiro. Há silêncio e tranquilidade, e o único som que se escuta é o dos ônibus e carros que passam perto, na Avenida Presidente Vargas. Aos poucos, a Saara vai ganhando forma, os portões se abrem e trazem cor ao comércio local. Penduradas nas ruas, as caixas de som anunciam mais um dia de programação da rádio Saara, com notícias e anúncios das lojas. Só uma delas na Rua da Alfandega permanece fechada. No número 306, os portões se levantam apenas às 10h30m, mas na frente já se percebe uma fila de clientes que aguardam ansiosamente a abertura da joalheria Osher-King Box.

“Você é a última da fila?, pergunta uma alta mulher que se coloca ao lado da porta da loja. Quando finalmente os portões se levantam, percebemos que dentro da Osher estão mais de oito vendedores esperando para atender os pedidos dos clientes. Na porta, uma mulher de baixa estatura e de coque nos cabelos controla a entrada e saída de pessoas na loja, sem largar sua garrafa de álcool gel. No fundo da loja, de frente para o balcão, Silvio Zeitune faz a contabilidade dos pedidos e auxilia as vendedoras. Com uma breve olhada para a nota fiscal que mostra o preço dos produtos comprados pela cliente, mas não o total a pagar, ele levanta a cabeça em menos de um minuto e diz: “Deu R$ 138,00 senhora”.
“Eu sempre fui bom em matemática, física e química. Por isso, acabei escolhendo fazer engenharia”, conta Zeitune, formado em Engenharia Eletrônica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Direito pela antiga Moraes Júnior. Além de assumir a direção da joalheria da Saara, também auxilia na contabilidade das peças. Foram as circunstâncias da vida que o levaram a trabalhar na empresa da família. Sorte parecida com a do pai, Zeca Zeitune, que também se formou em Engenharia, mas acabou indo trabalhar na joalheria.

A história da família Zeitune, porém, começou bem longe do Rio de Janeiro, e há muito tempo. “É uma história bonita!”, empolga-se Sílvio, com um brilho diferente no olhar quando começa a contar a história de seu avô, Moisés Zeitune, que nasceu em Jerusalém em 1913, ainda no tempo do Império Otomano. A mãe morreu quando deu à luz ao menino, que veio para o Brasil com apenas 8 anos de idade, no início dos anos 1920. Aqui, morou com o pai, o irmão mais velho, a irmã, a madrasta e os dois filhos do segundo casamento de seu pai. Brasil e Jerusalém são países bem diferentes e a madrasta não se adaptou e voltou para casa depois de apenas seis meses. O pai de Moisés até tentou, mas também acabou voltando para Jerusalém e deixou o pequeno Moisés com os irmãos.
Ainda criança, ele enfrentou a rejeição da irmã e acabou indo morar nas ruas do Rio. Mas a esperança nunca o abandonou. “Ele não tinha um olho, que foi arrancado a sangue frio em Jerusalém por causa de uma infecção. Como não existia penicilina nem antibiótico arrancaram o olho. Então, imagina, ele sem olho indo virar um garoto de rua? Ficava sem comer vários dias e passou cinco anos na rua”. Sua vida só mudou quando encontrou uma família adotiva. Aos poucos, foi conseguindo conquistas e independência com trabalho duro. Analfabeto, Moisés logo percebeu, quando começou a trabalhar, que precisava aprender a ler e escrever. Antes de abrir sua primeira joalheria, há 90 anos, foi engraxate e teve um brechó. A loja de joias, antes de receber o nome de Osher, se chamava Casas Jerusalém, em homenagem à terra natal. “E depois de tudo o que meu avô passou, ele ainda sustentou o irmão mais velho que não quis cuidar dele, os filhos da irmã que um dia o rejeitou, o marido dela que o expulsou de casa. Ou seja, o que não fizeram com ele, ele fez com os outros. A história é bonita por ser de superação e principalmente de empatia”, orgulha-se o neto Sílvio.

Trabalhar com comércio requer muita dedicação e principalmente tempo. E na Saara muitas lojas, além de fonte de renda, são tradições para as famílias. Todavia, com o passar do tempo, as gerações têm abandonado as empresas familiares e passado o ponto. Sílvio, mesmo trabalhando há alguns anos na Osher, diz que o comércio é algo muito sacrificante. “Então, a próxima geração vê o esforço e a dificuldade e não quer. Muitos filhos de comerciantes viraram profissionais liberais”. O comerciante lembra que as famílias costumavam viver no local, em cima de suas lojas. “Essas pessoas não estão mais no comércio. Hoje, tem aqui poucos remanescentes dessas famílias, e muitos chineses. Já passaram coreanos, mas hoje temos basicamente chineses e alguns remanescentes antigos”. O próprio Silvio não deseja que os filhos assumam seu lugar no futuro. Com tom mais sério, ele admite: “Sinceramente? Não é uma coisa que eu desejo ao meu filho, trabalhar com comércio é muito difícil!”.
“Silvio, será que o senhor poderia me ajudar?” A conversa é interrompida por uma das vendedoras que pede ajuda com a contabilidade de uma cliente. A cliente de cabelos longos se aproxima do balcão, sorri e se mostra satisfeita com a compra que fez: “Minha tia amou o cordão, viu Silvio?”. A alma da loja são os clientes e Silvio sabe bem disso. “A relação com os clientes tem que ser boa, então se você costuma agradar aos clientes, eles reconhecem isso”. Mas não é só de clientes que uma empresa é feita. Adriana, de 42 anos, trabalha ao lado de Silvio há 15 anos e já se sente um pouco da família.
Silvio gosta de se lembrar das histórias que seu pai lhe contava sobre a infância e se inspira em seu avô, que lutou desde cedo para conquistar seu espaço. Guarda boas lembranças de Jerusalém, que já visitou. “É um lugar mágico! Ainda tem a casa que meu avô nasceu. Tá tudo lá! A família era muito grande lá.”

Fora da Osher, Silvio leva uma vida tranquila e seu lazer favorito é estar ao lado da família. É tijucano e a Floresta da Tijuca está presente em vários momentos de sua vida, mas ainda assim não dispensa um passeio pela Lagoa ou no Jardim Botânico. É amante de uma boa leitura e adora conhecer novos idiomas. O último livro que leu, inclusive, assim como a história de sua família, também se passa em Jerusalém. De Amor e Trevas, de Amós Oz, conta a história do autor mostrando os caminhos de Israel, da diáspora à fundação de uma língua e de uma nação.
As memórias que viajaram de Jerusalém ao Brasil e que são passadas de geração a geração pela família de Silvio encaixariam-se perfeitamente nas páginas de um livro. Mais um para a coleção de histórias da biblioteca viva que é a Saara.
Texto e fotos por Vanessa Barcellos
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