De lá para cá com as memórias de Said Mussalem
- Vanessa Barcellos
- 28 de abr. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 13 de mai. de 2021
O relógio marcava nove horas da manhã de uma quarta-feira. Os paralelepípedos da Rua da Alfândega notavam os passos apressados na busca pelos antigos comerciantes da Saara. Entre uma loja e outra, a resposta era sempre a mesma: “Quer saber sobre a Saara? Pergunta ao Said!”. Mas, afinal, quem é Said? A resposta poderia ser difícil se ele não fosse tão popular pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro. Por ali, não há quem não conheça e não há quem não saiba que ele é um dos donos da Casas Pedro.
A busca pelo Said não é das mais tranquilas. Entre as cinco franquias da Saara, dizem-me que é fácil encontrá-lo na loja da Buenos Aires. “Está procurando o Said? Ele tá na outra loja”. Na semana seguinte, às dez e meia da manhã a pergunta recebia a mesma resposta “Ele está na outra loja”. Mas qual loja? Difícil saber ao certo, ele percorre o Centro do Rio de Janeiro em seu carro, parando em cada franquia para fazer entregas. Na terceira semana, finalmente o vi pela primeira vez, um senhor de meia estatura, com charuto na boca e de máscara na mão, andava calmamente em direção à loja 346 na Buenos Aires. No primeiro momento, poucas palavras, mas a história da família faz a timidez sumir de cena.
A história da popular Casas Pedro começou na década de 1920, quando os pais de Said, Bretus e Olga Mussalem, deixaram o Líbano devastado pela guerra para morar em um sobrado no Rio de Janeiro. Antes de começar a vender as famosas especiarias árabes, a empresa da família começou com frutas. Bretus era mascate. O pai de Said percorria as ruas do Rio de Janeiro carregando frutas na cabeça e, assim, fazia a sua renda. Tempos depois, abriram uma pequena loja embaixo de onde moravam. A loja ganhou o nome atual através dos clientes fiéis que iam às compras e diziam: “Vou na Casa do Pedro”. Mas quem é Pedro? Bretus, em árabe, é Pedro em português, nome que o pai de Said adotou ao chegar no Brasil.

Em 1932, a loja foi finalmente inaugurada, quando a empresa do libanês Pedro e da síria Olga começou a oferecer, além das frutas, os produtos árabes. Said começou cedo. Aos 13 anos, em 1961 começou a ajudar o pai nas vendas. Nos anos 1990, assumiu a direção do estabelecimento e, desde então, sempre busca inserir novidades no catálogo da loja. “Fomos continuando o que meu pai começou e nos tornamos o que somos hoje. Eu sou da segunda geração e meus filhos da terceira. Hoje eu sou aposentado, mas ainda assim trabalho. Agora, meus filhos assumiram a empresa. Eles começaram a incrementar a cada ano, botaram mais artigo e foi crescendo. Agora a gente está em todo o lugar do Rio de Janeiro, temos 50 lojas”.

Aos 73 anos, Said vai todos os dias à Saara, abre a loja da Buenos Aires e não para quieto. Por isso, é sempre difícil encontrá-lo, já que ele percorre as franquias da empresa para garantir a qualidade no atendimento. Em cada parada, ele se certifica de que os clientes estão sendo bem atendidos. Se precisar, ele mesmo faz as vendas. “Eu lido com os clientes no dia a dia, eu sou do tempo antigo, gosto de contato. Eu faço porque eu gosto de tratar bem o cliente. Por isso a loja vai se mantendo e esse é o maior orgulho da casa. Se eu não tratar bem o meu freguês ele não volta mais, né?”.
Os retratos das ruas vazias não são comuns na história da Saara, muito menos as lojas fechadas. Com a pandemia do novo coronavírus, os comerciantes precisaram lidar com o movimento fraco e a queda no número de vendas. A Casas Pedro, por exemplo, mesmo com as lojas recebendo clientes diariamente, teve redução de 50% na renda mensal.

Além de precisar enfrentar os números caindo no final do mês, a pandemia também deixou muitas pessoas em luto. Mesmo diante das perdas e da crise que afeta o comércio, Said permanece esperançoso por dias melhores. “A pandemia afetou muito. Prejudicou a gente do comércio e tem muita loja fechando. Esse vírus tá matando muita gente, eu mesmo perdi meu irmão, o Eduardo morreu de Covid. Eu tive também, foi bem complicado. Mas é isso aí, estamos lutando. Se Deus quiser vai tudo melhorar”.
A realidade é que Said não se deixa abater. Como driblar a crise? Para ele é simples: “A gente dribla trabalhando, você permanece trabalhando e lutando. É assim que a gente vence os problemas, acreditando”. E em relação ao vírus? Os olhos de Said brilham ao dizer que tomará a vacina em breve. Ele acompanha o calendário de vacinação divulgado pela prefeitura e conta os dias para receber a primeira dose.

Desde jovem, Said trabalha com o comércio de especiarias. Suas mãos parecem conhecer, ao simples toque, cada produto que oferece na loja. O trabalho, realizado desde a infância, não é considerado um fardo. Lidar com pessoas sempre foi algo que o motivou, assim como aprender sobre as mercadorias novas que chegavam. Era como uma brincadeira que, além de divertir, trazia conhecimento. Não estudou e nem se formou em nenhum curso para adquirir conhecimento sobre o comércio, mas Said atribui tudo o que aprendeu a alguém: “O curso é Deus! Eu aprendi a trabalhar com Deus. Desde os 13 anos de idade, Ele sempre me ajudou e permanece até hoje aos 73 anos”.
Thaís Salazar e Victor Vinicius são funcionários da Casas Pedro da Rua Buenos Aires.
A Saara é um ponto de encontro de muitas culturas diferentes. Said conhece muitos dos comerciantes que trabalham nas ruas do Centro, é amigo de outros descendentes, que assim como ele tiveram o começo de sua história marcada pela saída do país de origem. “O Saara antigamente era tudo moradia, muita gente veio de outro país morar aqui. Antigamente, os sobrados, os mascates vieram pra cá. E o Saara foi crescendo, árabes, judeus, armênios, tinha uma porção de português, italiano tudo misturado. Agora tem mais chinês que tudo. Então chineses, japoneses e coreanos tomaram conta”.
A visão que Said tem da chegada dos chineses à Saara é retratada em seu filme favorito, Made In China, de 2014, estrelado por Regina Casé e dirigido por Estevão Ciavatta. No filme, ele aparece em algumas cenas vendendo especiarias, assim como fazia na infância. O filme conta a história de Francis (Regina Casé) que tenta ajudar o patrão, Seu Nazir (Otávio Augusto), um descendente de libaneses e dono da Casa São, a não perder clientes para a Casa do Dragão, recém-aberta pelo chinês Chao (Tony Lee), onde os produtos são mais baratos. Inclusive, o personagem interpretado por Otávio Augusto, Seu Nazir, lembra Said. O personagem, assim como ele, também é descendente de libanês e seu pai, assim como Bretus Mussalem, deixou o Líbano para começar uma nova vida na Saara.

Said já teve a oportunidade de conhecer o Líbano ao lado de seus pais quando era criança, para visitar parentes que ainda moram lá. Mesmo tendo ficado encantado com o país e achado lindo cada detalhe daquele lugar, diz que ainda prefere o Brasil e que não trocaria o país por nada. Os olhos brilham, a voz se amansa e as terras verde-amarelas recebem elogios do comerciante: “O Líbano é lindo mas igual o Brasil não tem. Brasil é sem igual, mesmo do jeito que tá.”

Quando percebemos que Said, mesmo aposentado, vai ao trabalho todos os dias, é fácil notar a paixão que tem de ser comerciante. Sua vida é, como ele disse, 80% constituída pela Casas Pedro e, por isso, falar de Said é falar da empresa. Mas e fora do trabalho? Quando não está percorrendo as ruas cariocas visitando as franquias, ele gosta de passear ao lado da namorada e também de se reunir com os três filhos. Passear? Não importa onde, desde que seja no seu lugar favorito: o Rio de Janeiro. É apaixonado pelo Rio de Janeiro e não dispensa um bom samba. Mangueirense de coração, ele tem na escola verde e rosa suas músicas favoritas. “Eu gosto muito de samba, adoro ouvir. Eu sou Mangueira, é a minha escola desde muito tempo! Eu gosto do samba da mangueira, é lindo”.
Em todo carnaval, as escolas de samba produzem sambas-enredos para contar as mais variadas histórias no desfile na Sapucaí. Quem sabe um dia a vida de Said não inspira um samba repleto de versos ritmados? Mas enquanto isso não acontece, ele continua percorrendo as ruas da Saara, marcando pessoas e contando um pouco da história da sua família a todo amante de uma boa conversa. Se precisássemos de um samba-enredo como trilha sonora, poderíamos facilmente usar o da Estação Primeira de Mangueira de 2001, de Marcelo D'Aguiã, Gilson Bernini e Bizuca Clovis Pê, que num trecho diz: “Tem mascates, troca-troca, gritaria. A dança do ventre até hoje contagia, vou pro Saara comprar, no dia-a-dia. Descendo o morro, vou vendendo alegria.”
Texto e fotos por Vanessa Barcellos.
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